Reforma da Lei de Recuperação e Falências: o que muda para cooperativas médicas na saúde suplementar
Artigo elaborado pelos advogados Alfredo de Assis Gonçalves Neto e Micheli Mayumi Iwasaki
A recente aprovação da Lei Federal nº. 14.112 de 24.12.2020 trouxe uma série de alterações na Lei de Recuperação e Falências (Lei Federal nº. 11.101/2005), tendo uma peculiaridade no que se refere à sua (in) aplicabilidade frente às sociedades cooperativas, em especial àquelas médicas e que atuam no mercado de saúde suplementar.
Na sua redação original, que permanece vigente, quaisquer tipos de sociedades que sejam operadoras de saúde não se sujeitam ao regime de recuperação e falências (art. 2º, II, LRF)[1]. Ademais, a mesma vedação tem previsão expressa na Lei dos Planos de Saúde que determina o processo de liquidação extrajudicial (art. 23, Lei Federal nº. 9.656/1998)[2] e na Lei Geral das Sociedades Cooperativas (art. 4º, Lei Federal nº. 5.764/1971)[3].
Ocorre que o Congresso Nacional aprovou a inclusão do § 13º ao artigo 6º, cuja redação é a seguinte: “Art. 6º A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial implica: […] § 13. Não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial os contratos e obrigações decorrentes dos atos cooperativos praticados pelas sociedades cooperativas com seus cooperados, na forma do art. 79 da Lei nº 5.764, de 16 de dezembro de 1971, consequentemente, não se aplicando a vedação contida no inciso II do art. 2º quando a sociedade operadora de plano de assistência à saúde for cooperativa médica.”
O dispositivo havia sido objeto de veto presidencial, fundado em que o Ministério da Saúde apontara contrariedade ao interesse público e violação à isonomia por dar tratamento diferenciado às cooperativas médicas em relação aos demais tipos societários na saúde suplementar que se sujeitam, igualmente, ao regime de liquidação extrajudicial. Além disso, a Mensagem de veto pontuou que a “excepcionalidade impacta nas concessões de portabilidade especiais de carências a beneficiários de operadoras a serem compulsoriamente retiradas do mercado regulado”, com risco de desassistência.
Com a derrubada do veto pelo Congresso Nacional, resta a norma incorporada ao nosso ordenamento jurídico.
Agora fica o questionamento: o que muda para as cooperativas médicas na saúde suplementar?
A primeira objeção se dá pela incoerência sistêmica da inserção exclusiva das cooperativas médicas de saúde suplementar. Isso porque, na mesma condição jurídica-societária existem cooperativas odontológicas e que também são operadoras sujeitas à regulação da Agência Nacional da Saúde Suplementar. Além delas, em condição análoga, estão as cooperativas de crédito, que são igualmente reguladas de modo especial, enquanto agentes do sistema financeiro, sujeitas ao Banco Central e o Conselho Monetário Nacional.
Outra questão que merece ser destacada é a precária técnica legislativa adotada na redação do dispositivo, cuja hermenêutica e aplicação há de enfrentar alguns percalços. O artigo 6º, caput, trata dos efeitos da decretação da falência ou o deferimento da recuperação judicial, sendo que os parágrafos subsequentes têm por objeto questões processuais e procedimentais a serem observadas em razão de tal decisão.
Nesse contexto, a leitura inicial da primeira parte do § 13º sob análise induz à interpretação de que os créditos decorrentes de contratos celebrados com cooperativas médicas operadoras de saúde teriam natureza extraconcursal, mas estariam restritos àqueles decorrentes de ato cooperativo. Porém, a segunda parte do dispositivo, que as sujeita ao regime de recuperação e falências, está desprovida de qualquer sentido lógico: seja pela absoluta estranheza da lei definir a priori a sua respectiva consequência jurídica, seja pela inexistência de relação de causa e efeito entre os dois comandos.
Sendo de conhecimento público algumas tentativas de processamento de pedidos de recuperação judicial de cooperativas médicas e operadoras de saúde, é possível deduzir que esse jabuti foi colocado na lei pelo lóbi daquela que não logrou êxito em sua empreitada. Lamentavelmente, o legislador não se deu conta desse fato. Bastaria uma atenção mínima para detectar, de pronto, a incongruência resultante da via oblíqua utilizada com a finalidade de obter tal favor legal para o setor interessado e para perceber que uma norma jurídica não tem de apontar as consequências de sua aplicação.
Ainda assim, até que ponto a não sujeição aos efeitos de uma recuperação judicial de contratos e obrigações decorrentes de atos cooperativos pode conduzir ao afastamento da norma que veda a aplicação da Lei Falimentar e Recuperacional às operadoras de planos de saúde? Para os mais argutos, a análise seria um pouco mais profunda, a ponto de notarem que essa estranha disposição jamais teria por consequência a revogação do art. 23 da Lei 9.656/1998, que, em caráter imperativo, determina a aplicação do regime de liquidação extrajudicial às operadoras de planos de saúde, proibindo-as, expressamente, de requerer recuperação judicial e de serem declaradas falidas. Tampouco poderia revogar dispositivo que trata da sua natureza jurídica e que consta no art. 4º da Lei 5.764/1971.
Interessante observar que as várias tentativas de obtenção do favor legal da recuperação judicial (e houve até um clube de futebol que entrou nesse embalo), não consideram que, não sendo seu plano de recuperação aprovado (e a aprovação depende dos credores), ou não se cumprir, a falência virá inexoravelmente, provocando um final indesejado e, certamente, desastrado, que leva à liquidação total do patrimônio do falido e, sendo pessoa jurídica, com sua consequente extinção.
Pode-se argumentar que o processo de insolvência civil é perverso por não permitir o reerguimento da sociedade com alternativas de salvamento, senão pelo pagamento de tudo que o insolvente deve ou com um acordo no qual não haja oposição de qualquer de seus credores.
Mas, se a ideia é aprimorar, têm de ser sopesadas as peculiaridades que exigem maior tutela jurídica. No caso das cooperativas, existem incompatibilidades materiais e sistêmicas e que mostram a impossibilidade de simples adesão ao regime falimentar, concebido para o empresário individual e as sociedades empresárias. Para citar um efeito prático singelo: em caso de decretação de falência, como adequar a figura de um administrador judicial, estranho ao quadro social, e o princípio universal da gestão democrática que é uma das características primordiais das cooperativas? No tocante àquelas que atuam como operadoras na área da saúde, como conciliar a proteção das pessoas que compraram seus planos, em meio à atuação de um administrador judicial, sem o mecanismo de proteção hoje existente, de transferência forçada, em prazo exíguo, das carteiras da operadora insolvente para outras operadoras (Lei 9.656/1998, art. 24)? Com que meios, então, tal cooperativa irá superar sua situação deficitária? Revogam-se as normas de proteção previstas na lei regulatória?
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[1] Art. 2º Esta Lei não se aplica a: […] II – instituição financeira pública ou privada, cooperativa de crédito, consórcio, entidade de previdência complementar, sociedade operadora de plano de assistência à saúde, sociedade seguradora, sociedade de capitalização e outras entidades legalmente equiparadas às anteriores.
[2] Art. 23. As operadoras de planos privados de assistência à saúde não podem requerer concordata e não estão sujeitas a falência ou insolvência civil, mas tão-somente ao regime de liquidação extrajudicial.
[3] Art. 4º As cooperativas são sociedades de pessoas, com forma e natureza jurídica próprias, de natureza civil, não sujeitas a falência, constituídas para prestar serviços aos associados, distinguindo-se das demais sociedades pelas seguintes características: […]
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Por Alfredo de Assis Gonçalves Neto, professor titular em Direito Comercial da Faculdade de Direito da UFPR, e Micheli Mayumi Iwasaki, advogada, mestre em Direito e especialista em Sociologia Política pela UFPR. Sócios do escritório Assis Gonçalves, Kloss Neto Advogados Associados
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