Julgamento de crime de estupro é marcado por inércia, retrocesso e impunidade
Artigo elaborado pelo advogado Vinicios Cardozo, especialista em Direito e Processo Penal, pós-graduando em Ciências Penais pela Escola Superior da Advocacia (ESA)
A absolvição do empresário André de Camargo Aranha, acusado de estuprar a jovem promoter catarinense Mariana Ferrer, de 23 anos, durante uma festa em 2018, gerou consternação no país. A internet foi o principal canal que as pessoas utilizaram para externar opinião e revolta. Foi inocentado porque o juiz acatou a tese de absolvição proposta pela própria acusação, de ausência de provas, sobretudo de que a palavra da vítima não basta para condenação pelo crime de estupro de vulnerável. O caso demanda muitas considerações.
Segundo a legislação brasileira, comete estupro, o agente que constrange alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.
A violência que retrata o artigo não necessariamente é física (real), podendo também ser presumida, hipótese de atos praticados contra menores de 14 anos, alienados mentais ou contra pessoas que não puderem oferecer resistência.
No que diz respeito ao oferecimento de resistência, a torpeza (uso de substância entorpecente lícita ou ilícita), como subterfúgio para a prática da conjunção carnal ou dos atos libidinosos, é considerada meio de violência presumida.
O crime de estupro tem como elemento subjetivo, o dolo, que consiste na vontade (elemento volitivo) livre e consciente (elemento cognitivo) de constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.
Trata-se de crime comum, pois o tipo penal não exige que o agente possua características específicas para cometer o ato, e a consumação do delito independe da conjunção carnal, podendo qualquer outro ato libidinoso consumar o delito.
A segunda premissa que se deve ter em mente é a caracterização dos crimes na modalidade culposa.
O artigo 18, inciso II do Código Penal, dita a definição de crime culposo, no qual considera-se a conduta como culposa quando o agente deu causa ao resultado (criminoso) por imprudência (agiu sem a cautela necessária, de maneira precipitada), negligência (agiu com descuido ou desatenção) ou imperícia (agiu sem habilidade ou qualificação técnica para o ato).
É, em resumo, um agir descuidado que acaba por gerar um resultado ilícito não desejável, porém previsível.
Para os fins práticos, só há que se falar em crime culposo, se a lei admitir a modalidade culposa, como é o caso do crime de homicídio, por exemplo, que tem sua forma culposa prevista no art. 121 §3º do Código Penal.
Contudo, se um agente comete um delito sem a presença de dolo (vontade consciente de obter o resultado delituoso) e o delito não prever a modalidade culposa, estar-se-á diante de uma hipótese atipicidade, pela ausência do elemento subjetivo do tipo, e, portanto, não passível de responsabilização na esfera penal.
E o estupro culposo?
No recente caso que tomou o noticiário e gerou revolta nas redes sociais, um empresário foi acusado de cometer o delito de estupro de vulnerável contra uma jovem, por ter, supostamente, se aproveitado da torpeza desta para cometer o crime.
Superada a instrução processual, o empresário foi absolvido, sob o argumento de que a palavra da vítima é dissonante das provas juntadas no processo, e pela ausência de provas, a absolvição seria medida que se impõe.
“Estupro culposo”, em verdade, não aparece no processo, a expressão foi utilizada pela imprensa para tentar explicar de maneira “simples” a possibilidade de um suposto cometimento de crime quando o agente não tem condições de saber que havia vício quanto ao consentimento, ou, no caso, que Mariana não estava consentindo com o ato sexual.
A tese adotada pela promotoria partiu de um argumento retórico (ao menos em tese), de que o acusado teria supostamente cometido o crime de estupro, mas sem a intenção de comete-lo, remetendo à ideia de culpa, nada mais a se falar sobre isto.
O que choca, entretanto, é o fato de a violência sexual no Brasil, segundo o último anuário brasileiro de segurança pública, ter atingido recorde de 66 mil vítimas de estupro no ano de 2018, sendo o maior índice desde quando o estudo começou a ser feito, em 2007.
Para se ter uma ideia, no Brasil, uma mulher é vítima de estupro a cada 11 minutos, e isso em números oficiais, pois estima-se que a subnotificação atinja valores astronômicos, entre 300 e 500 mil estupros a cada ano.
Enquanto de um lado, há o processo e suas nuances técnicas, de outro, há as cenas de rebaixamento, ataques pessoais e acovardamento presenciadas durante a oitiva da vítima, reacendendo o necessário diálogo sobre a “cultura do estupro” e o machismo estrutural, ambos profundamente enraizados em nossa sociedade.
Tais comportamentos que relativizam e/ou silenciam a violência sexual contra a mulher, são parte do motivo pelo qual apenas aproximadamente 10% dos casos de estupro sejam denunciados, pois a exposição e o ataque à vítima, além de não importar ao debate, promovem a revitimização e o medo da vítima em denunciar seus agressores.
Nestes casos, quase sempre a palavra da vítima é a única prova que se tem do cometimento do delito, e mitigar esta palavra, significa abrir precedente em um sem número de casos, levando à impunidade.
Comentários depreciativos sobre a conduta social da vítima em nada contribuem para a solução do caso, ao passo que as agressões foram efetivadas em frente a um Juiz de direito, que além de presidir o ato, deveria zelar pela integridade de todos que ali estavam, e que, no entanto, permaneceu inerte. De um promotor de Justiça, imbuído de um papel de fiscal da lei, que diante do cenário, permaneceu inerte, tudo isto enquanto a vítima era desqualificada pelo simples fato de ser mulher.
O que não se duvida, é que TODOS os presentes possuíam mais do que um dever de agir, mas uma obrigação de fazer cessar a violência.
Cabe acrescentar, enfim, que a anulação do julgamento pode ser uma das teses adotadas por eventual assistência de acusação, seja pela absoluta imparcialidade na condução da oitiva da vítima durante a audiência de instrução, seja pela eventual desconstrução do tipo penal e o peso das provas, sobretudo pelo histórico relevo que se dá à palavra da vítima nos casos de crimes sexuais.
Obviamente, ainda há um longo caminho a se trilhar, sobretudo no combate à violência contra a mulher, porém, um primeiro passo nesta direção, sem dúvidas, depende da aplicação da lei existente, observados os direitos e garantias inerentes a cada caso, e não com a criação de novas leis.
Se for para se falar em atualização, mais correto seria atualizar nossa cultura, que historicamente relativiza a postura da vítima em detrimento dos fatos que pesam contra o agressor, e se traduzem em retrocesso e impunidade.
Por Vinicios Cardozo, advogado, especialista em Direito e Processo Penal, pós-graduando em Ciências Penais pela Escola Superior da Advocacia (ESA), sócio fundador e coordenador do núcleo de ações criminais e de compliance officer do escritório GMP | G&C Advogados Associados, coordenador do Grupo Permanente de Pesquisas “Teses Defensivas” na OAB Paraná (2018-2019), membro da Comissão da Advocacia Dativa da OAB Paraná e ex-presidente da Comissão dos Advogados Representantes da Subseção de São José dos Pinhais no Foro Regional de Piraquara.
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