Breves notas sobre a Lei nº 14.010 – Lei da Pandemia e os condomínios edilícios
Por Guilherme Kloss Neto, advogado
Com o advento da pandemia do novo coronavírus, o Congresso Nacional brasileiro editou em 20 de março de 2020 o Decreto Legislativo nº 6, reconhecendo, para as finalidades fiscais de que trata o art. 65 da Lei Complementar nº 101/2000, a ocorrência de estado de calamidade pública no país.
Em seguida, o Congresso pôs em tramitação o Projeto de Lei (PL) nº 1.179/2020, com o objetivo de instituir normas de caráter transitório e emergencial visando à regulação de relações jurídicas de direito privado em virtude da expansão no país da citada doença de alcance mundial.
Ao cabo do processo legislativo, que tramitou de forma célere, o texto legal foi sancionado pela Presidência da República com vetos parciais, sendo publicada então a Lei nº 14.010 de 10/06/2020, dispondo sobre o “Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do coronavírus (Covid-19)”.
Estas notas, escritas antes da apreciação dos vetos presidenciais pelo Congresso Nacional, se propõem a uma exposição sucinta do PL aprovado pelo Poder Legislativo e à análise mais detida dos tópicos vetados e sancionados pelo Poder Executivo, envolvendo condomínios edilícios.
Decretada a calamidade pública decorrente da pandemia, às quais se seguiram orientações das autoridades da área de Saúde sobre isolamento social, para tentar evitar o contágio e a proliferação da doença entre a população, o legislador brasileiro buscou regular matérias sensíveis por ela afetados na órbita das relações de direito privado, afora as trabalhistas, que mereceram regramento próprio, estipulando normas de caráter emergencial e transitório, para viger desde a data de 20/03/2020, considerado pelo PL como o marco inicial dos eventos derivados da pandemia da Covid-19, ou desde a entrada em vigor da nova lei, conforme especifica para os casos concretos, até a data de 30/10/2020, estimada originalmente para a volta da “normalidade” pós pandemia.
O PL enviado à sanção dispõe que a suspensão da aplicação das normas nele referidas não implica sua revogação ou alteração, dado o caráter de transitoriedade da matéria nele regulada.
Assim, tratou-se da suspensão dos prazos de prescrição e decadência previstos no ordenamento jurídico, da edição de regras especiais a serem observadas pelas pessoas jurídicas de direito privado (associações, sociedades e fundações) no que se refere a restrições para a realização de reuniões e assembleias presenciais [vetado], permitindo que a assembleia geral venha a ser realizada por meios eletrônicos, ainda que tal via não esteja prevista nos atos constitutivos da pessoa jurídica.
Cuidou o PL, também, de instituir regras sobre a resilição, resolução e revisão de contratos [vetado], sobre relações de consumo em caso de entrega de mercadorias perecíveis ou medicamentos via delivery, a respeito de despejo em locações de imóveis urbanos [vetado], além suspender os prazos para aquisição de bens nas hipóteses de usucapião.
Dispôs, ainda, sobre o regime concorrencial, deixando sem eficácia ou abrandando dispositivos da Lei que estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, e, no âmbito do Direito de Família e Sucessões, determinou que a prisão civil por dívida alimentar deverá ocorrer sob a forma domiciliar, além de dilatar o prazo para abertura e conclusão do processo de inventário e partilha, de permitir que o Conselho Nacional de Trânsito edite normas de flexibilização em regras do Código de Trânsito sobre peso e lotação de veículos [vetado], e de prorrogar para 01/08/2021 o início da vigência de dispositivos sobre sanções administrativas da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais.
Feitas essas considerações sobre os demais tópicos do PL, passemos ao tema central destas notas.
No capítulo dos condomínios edilícios, o PL conferiu poderes especiais ao síndico, além dos que dispõe no regime do Código Civil, especificamente para restringir o uso de áreas condominiais comuns e restringir ou proibir a realização de reuniões e festividades, conforme definido no art. 11, seus incisos e parágrafo:
Art. 11. Em caráter emergencial, até 30 de outubro de 2020, além dos poderes conferidos ao síndico pelo art. 1.348 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), compete-lhe:
I – restringir a utilização das áreas comuns para evitar a propagação da Covid-19, respeitado o acesso à propriedade exclusiva dos condôminos;
II – restringir ou proibir a realização de reuniões e festividades e o uso dos abrigos de veículos por terceiros, inclusive nas áreas de propriedade exclusiva dos condôminos, como medida provisoriamente necessária para evitar a propagação da Covid-19, vedada qualquer restrição ao uso exclusivo pelos condôminos e pelo possuidor direto de cada unidade.
Parágrafo único. As restrições e proibições contidas neste artigo não se aplicam aos casos de atendimento médico, à realização de obras de natureza estrutural ou à realização de benfeitorias necessárias.
Mas esse art. 11 do PL, que inovava ao conceder os citados poderes excepcionais ao síndico, foi vetado integralmente pela Presidência da República, sob a justificativa de que a propositura legislativa “retira a autonomia e a necessidade das deliberações por assembleia, em conformidade com seus estatutos, limitando a vontade coletiva dos condôminos”.
Curioso é ver que a motivação do veto integral ao citado dispositivo, deriva do entendimento de que somente a assembleia dos condôminos poderia impor tal sorte de restrições, ao mesmo tempo em que reconhece a dificuldade de realização desse tipo de ato coletivo no momento contemporâneo, ao sancionar o art. 12 do mesmo PL, que será analisado mais adiante.
Os vetos aplicados sobre as disposições do art. 11 têm sido interpretados como uma mitigação dos objetivos do legislador na tentativa de contenção da disseminação da malfadada doença, que já alcançou a terrível marca de 70.000 mortos no Brasil e não dá sinais de arrefecimento. Boa parte da população do país, sobretudo nos centros maiores, vive em condomínios edilícios, e as regras restritivas de direitos que foram conferidas ao síndico pelo PL, de impor medidas restritivas de circulação e aglomeração, destinavam-se à proteção dessas pessoas, outorgando ao administrador do condomínio, pelo seu conhecimento da realidade local, o poder de impedir o uso indevido da propriedade comum e mesmo da particular, quando realizado em detrimento da comunidade em geral.
Tais poderes que seriam conferidos ao síndico, como tudo o mais de que trata o PL, em caráter excepcional, dada a pandemia, e temporário, para deixar de viger depois de debelada a crise sanitária, buscavam permitir à administração condominial a edição de regras protetivas à coletividade dos condôminos, na linha das orientações de afastamento social mais do que recomendadas pela ciência médica em situações como a presente.
O veto teve grande repercussão nos meios jurídicos, mas há uma corrente de entendimento, à qual me filio, de que essas normas restritivas não precisam ser explicitadas em legislação extraordinária, bastando para tal os poderes conferidos ao síndico pelo Código Civil, quando lhe atribui competência para representar o condomínio e praticar os atos necessários à defesa dos interesses comuns, do cumprimento das normas internas e da diligência de conservação e guarda das partes comuns (art. 1.348, incs. II, IV e V). Mas não há dúvida de que a manutenção da parte vetada daria maior ênfase aos objetivos mirados pelo legislador quando da edição da norma.
De outro lado, foram sancionados sem vetos pela Presidência da República outros dois artigos do PL que tratam do condomínio edilício, e estão em plena vigência com a edição da Lei 14.010, a saber:
Art. 12. A assembleia condominial, inclusive para os fins dos arts. 1.349 e 1.350 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), e a respectiva votação poderão ocorrer, em caráter emergencial, até 30 de outubro de 2020, por meios virtuais, caso em que a manifestação de vontade de cada condômino será equiparada, para todos os efeitos jurídicos, à sua assinatura presencial.
Parágrafo único. Se não for possível a realização de assembleia condominial na forma prevista no caput deste artigo, os mandatos de síndico vencidos a partir de 20 de março de 2020 ficarão prorrogados até 30 de outubro de 2020.
Art. 13. É obrigatória a prestação de contas regular dos atos de administração do síndico, sob pena de sua destituição.
Pelo art. 12, a assembleia geral, inclusive para aprovação orçamentária, eleição de síndico e conselheiros e deliberação sobre qualquer outra matéria que dependa de manifestação dos condôminos, poderá ser realizada de forma virtual, mesmo que não haja autorização para tal na convenção ou no regimento interno, meio esse, aliás, que se popularizou via aplicativos de internet para reuniões em geral, na medida em que seu uso assegura a manutenção do distanciamento social pregado pelas autoridades sanitárias.
E a lei ainda autoriza, caso não seja possível por qualquer motivo a realização da assembleia de modo virtual, a prorrogação dos mandatos dos síndicos até a data-limite de 30/10/2020, independentemente de convocação aos condôminos para serem ouvidos sobre o tema, ou seja, há um reconhecimento implícito de que, por força da pandemia do novo coronavírus e em combate aos seus efeitos, os condôminos devem se manter sem aglomerações e sem a realização de reuniões presenciais, dada a permissão de prorrogação de mandatos da administração e não realização de assembleia, ainda que em desacordo com os estatutos.
O art. 13, a seu turno, em nada inova, antes confirma a obrigação do síndico em prestar contas de sua atuação, conforme previsto no Código Civil (art. 1.348, VIII).
Ao concluir estas notas, considero que a celeridade na tramitação do PL, deu o atendimento possível à situação de emergência que se verifica no país, no que respeita à esfera das relações jurídicas afetadas pela pandemia no âmbito do direito privado, propiciando análise aprofundada pela comunidade jurídica, de quem emanaram os prós e os contras que se podem esperar nesse tipo de situação urgente e transitória, estando ainda por ser apreciados pelo Congresso os vetos parciais da Presidência da República.
No que concerne aos condomínios edilícios, foi acertada a permissão da realização de assembleias por meios virtuais e também a possibilidade de extensão dos mandatos dos síndicos ao menos até a data prevista para a normalização da questão sanitária no país.
Em relação ao veto presidencial à extensão dos poderes do síndico (art. 11 do PL), considero que decorreu de equívoco do intérprete, pois, embora as medidas restritivas ali contidas possam vir a ser impostas pelo poder geral conferido ao administrador do condomínio no interesse de sua coletividade, a manutenção de tais poderes na lei de exceção daria maior visibilidade ao tema e o deixaria extreme de dúvidas.
Por Guilherme Kloss Neto, advogado, sócio do escritório Assis Gonçalves, Kloss Neto e Advogados Associados
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